quarta-feira, 4 de maio de 2011

matéria Revista Kalunga

O som do silêncio

por: Margarete Azevedo

Orquestra formada por deficientes auditivos de escola paulistana prova que as manifestações musicais extrapolam culturas, religiões ou quaisquer modismos


Um convite recebido por engano deu início a uma das orquestras mais inusitadas de São Paulo: a do projeto “Música do Silêncio”, que reúne alunos da Escola Municipal de Educação Especial Lucie Bray, no bairro do Jaçanã, dedicada a portadores de deficiência auditiva. O fato se deu há cerca de cinco anos, quando a diretora Claúdia Vendramel recebeu da Secretaria Municipal da Educação o documento endereçado a escolas de alunos ouvintes sobre o interesse na montagem de uma orquestra. Ainda assim, ela decidiu consultar os alunos, 12 manifestaram interesse. Atualmente, são 60, com idades entre 12 e 26 anos.

A direção do projeto é do professor de música Fábio Bonvenuto, para quem a música transcende a questão estética. “Não é só tocar bonito para emocionar ou agradar as pessoas. Todas as culturas e religiões se utilizam dela como uma forma de se elevar espiritualmente. Com os deficientes auditivos não é diferente. Muitas vezes, os desenhos rítmicos dos surdos parecem mantras. Eles vão se repetindo e você vai sendo absorvido. Eu me sinto recompensado em poder participar desses momentos com eles”, diz.

Segundo o professor, é uma incorreção do mundo dos ouvintes dizer que o surdo não tem habilidade musical ou que não pode tocar um instrumento. Até chegar a essa conclusão, no entanto, ele teve que Orquestra formada por deficientes auditivos de escola paulistana prova que as manifestações musicais extrapolam culturas, religiões ou quaisquer modismos O som do silêncio 18 pesquisar muito. Não esperava encontrar um terreno tão árido, pois não havia nenhum estudo sobre o assunto. A única informação que conseguiu foi a da existência de uma percussionista surda, a escocesa Evelyn Glennie. Em 2004, ela esteve no Brasil para se apresentar com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).

Códigos da música

Os alunos, durante as aulas, tocam tambores diversos, como conga, atabaque, djembe, ashiko, surdo, bateria e o cajón, de origem peruana, no formato de uma caixa, que faz o corpo todo “tremer”. A escolha pelos instrumentos de percussão não foi aleatória: “Eles têm a melhor resposta no corpo, são orgânicos. Os ouvintes usam o aparelho auditivo para ouvir música; eles a sentem no corpo. As frequências mais graves são sentidas na região da barriga e as agudas no peito”, explica o professor.

É utilizada a técnica do círculo de percussão, um movimento iniciado em Portugal, hoje, febre em diversos países do mundo, que emprega a percussão de forma orgânica. Os alunos aprendem, a exemplo de qualquer aula de música, a alfabetização musical, ou seja, os códigos absolutos da música e a escrita tradicional. Ao dominarem essa linguagem, mesmo sendo surdos, são capazes de interpretar e tocar um instrumento musical. Alguns criam novos padrões rítmicos, às vezes, alternam o compasso com facilidade, como do quaternário para o quinário, e conseguem manter o padrão, conforme Bonvenuto.

Esse conhecimento é resultado do interesse do professor pela música, que vem desde os 15 anos, quando estudava percussão na Escola Municipal de Música. Ele pretendia seguir o caminho do pai, também professor de música na rede pública de ensino. Chegou a integrar o corpo de músicos da Banda Sinfônica da Polícia Militar, mas saiu para realizar o seu objetivo. O primeiro trabalho foi com deficientes assistidos pela Casa de David, também em São Paulo. A atividade na entidade o levou a cursar musicologia e, posteriormente, pedagogia.

Algum “tempo” depois, em 1998, surgiu a possibilidade de trabalhar com alunos especiais, portadores de deficiência visual. Em uma época em que não se defendia a inclusão social através da música, Bonvenuto tinha a tarefa de codificar os sons que eles ouviam para o Braille. “É um trabalho muito abstrato, tudo tem de ser transcrito em pontos. Quem estuda música sabe que quatro semicolcheias com os colchetes ligados fazem parte de um pulso só. O deficiente visual tem que ‘ver’ cada colchete individualmente. Para tocar, primeiro lê a partitura para depois memorizá-la. É preciso muita atenção para transcrever isso para o Braille”, explica.

O deficiente auditivo tem dificuldade com a parte melódica da música. De acordo com o professor, quando se observa um exame audiométrico, percebe-se que as frequências agudas são praticamente zeradas. Há alunos que têm algum tipo de percepção em relação às frequências graves.

Reflexos no corpo

Fábio Érico Alves Coelho, 12 anos, estudante da 4ª série, começou os estudos musicais no início do ano letivo. No grupo, ele toca surdo, mas pretende chegar à bateria. Com a ajuda de Cláudia e Bonvenuto, ele diz que “sente” a música primeiro no chão. A sensação entra pelos pés e sobe por todo o corpo, alcançando a cabeça. “É muito bom!”, afirma. “Na verdade, nós também temos essa sensibilidade, porém, com a audição, acabamos abstraindo essa sensação. Não é à toa que a Evelyn Glennie entra no palco descalça para acompanhar as orquestras”, acrescenta o mestre.

Em casa, o garoto costuma “treinar” na mesa, entre outros lugares. Indagado se estuda ou brinca, ele sugere que pergunte ao seu pai, que toca violão. Ele confessa que sua grande frustração é não ter estudado bateria. Por isso, se Fábio realmente quiser tocar bateria, vai juntar dinheiro e comprar uma. Sem dúvida, é o principal incentivador do filho. As colegas Jhenifer Olivia da Silva e Ingrid Cristina da Silva, ambas de 12 anos, estudantes da 4ª série, também confirmam essa sensação no corpo. “Um de nossos alunos que tocava tumbadora, hoje, no 1º colegial, ao fazer um solo mais intenso, começava a dar risadas. Ele dizia que sentia cócegas”, comenta Bonvenuto. Jhenifer, que também toca tumbadora, surpreende o professor pelo seu esforço e a preocupação em não cometer erros. Ingrid, por sua vez, é uma espécie de coringa nos ensaios. A garota transita pelos diferentes instrumentos de percussão de couro. Em comparação a muitos colegas, é privilegiada por ter resíduo auditivo, quer dizer, escuta alguns sons.

Os alunos têm realizado apresentações em diversos locais e eventos de São Paulo, como no Sesc Interlagos, na Bienal do Livro, nos Ceus municipais e no programa São Paulo Inclui. São 45 músicos, em regime de revezamento. Nessas ocasiões, alunos ouvintes da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Marechal Rondon, que tocam instrumentos de corda, sopro e metal, como teclado, guitarra, baixo, saxofone, trompetes e trombone, acompanham os percussionistas. “Desde o início, tivemos a preocupação com a inclusão de fato. Caso fosse um grupo somente de surdos, não seria inclusivo”, destaca Bonvenuto. No repertório estão canções do Tim Maia, Skank, jazz e música caribenha.

Segundo o professor, o projeto tem conseguido contribuir positivamente com a autoestima dos jovens. “Para o público, não há diferença entre não ouvinte e ouvinte”. Os preparativos das apresentações também monopolizam a atenção e geram envolvimento dos alunos. “Quem assiste ao grupo, percebe na expressão facial deles a vibração que sentem no momento. Eles ficam felizes, emocionados com a receptividade e a atenção do público. Isso é um grande estímulo para eles”, finaliza Cláudia.




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(Revista Kalunga)

Um comentário:

  1. Fábio, parabéns pelo projeto lindo, ações como essas me fazem acreditar que é possível construir um mundo melhor, formar pessoas melhores. Beijos, da prima distante...

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